sábado, 22 de outubro de 2016

Ideologia

Há duas concepções de ideologia: a neutra e a crítica. Na concepção neutra do senso comum ideologia é sinônimo de ideário: conjunto de ideias, doutrinas ou visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, que orienta suas ações sociais e políticas. A concepção crítica surge com a história do termo, originalmente proposto pelo conde Destutt De Tracy (1754-1836) para descrever uma ciência positiva da formação das ideias a partir das percepções sensoriais, uma tentativa de buscar as bases psicológicas da epistemologia. Napoleão foi o primeiro a usar o termo criticamente para caracterizar os “ideólogos” seguidores de De Tracy como “deformadores da realidade”. Este foi o sentido geral que Marx deu ao termo, como uma superestrutura das relações de poder econômico, cuja função é justificar as relações de poder estabelecidas: “ferramentas simbólicas voltadas à criação e/ou à manutenção de relações de dominação".

De acordo com a noção neutra entendo que cada um tem a sua ideologia: seu conjunto de ideias sobre o mundo – uma mistura de juízos de fato e de valor – que orientam suas decisões. Entretanto, justamente por incorporarem juízos de valor e terem efeitos práticos bons ou maus para o agente, ideias não são completamente neutras ou desprovidas de interesse e, sim, servem a propósitos ou motivos conscientes ou não do pensante. A grande parte dos motivos pré ou inconscientes são inculcados no agente pela sua educação e, sim, fazem parte da superestrutura cultural que sustenta as relações sociais e políticas do seu grupo social. Entendo assim que qualquer ideologia está carregada de voluntarismo idealista: a vontade de conformar o mundo a uma ordem de valores considerada ideal por quem a formula. E é justamente por serem idealistas na ordem dos valores que as ideologias deixam de ser realistas na ordem dos fatos. Entretanto, existem fatos resultantes de cadeias de causas e consequências determinadas que escapam às possibilidades de influência da vontade. Neste sentido, a decisão mais correta é a que se conforma a essa realidade determinística e não a que tenta inutilmente alterá-la. Mas ideias são produtos humanos e culturais, onde o interesse e a razão lógica são determinantes e que produzem também cadeias de causas e consequências, que dependem da vontade e onde a liberdade e a autonomia encontram seu espaço. Aqui, a conformidade e a aceitação tácita é que incorrem em erro de princípio.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Paradoxos do RH

O desenvolvimento dos Recursos Humanos nas organizações enfrenta alguns paradoxos. O primeiro paradoxo é que, em geral, as empresas declaram que as pessoas são o seu recurso mais precioso. Entretanto, as áreas de Recursos Humanos raramente fazem parte dos escalões mais altos de direção. Talvez porque sendo o lucro a finalidade da empresa, as pessoas são apenas instrumentos funcionais (funcionários) dos processos de produção de riqueza, enquanto as áreas de RH, dada sua vertente psicológica, podem querer priorizar o desenvolvimento das pessoas enquanto tais e não apenas como funcionários. Mas pessoas mais maduras e mais felizes podem sim produzir mais. Então, as empresas investem no desenvolvimento das pessoas sim.

Um segundo paradoxo diz respeito à avaliação do resultado do investimento no desenvolvimento das pessoas. Desenvolvimento é sinônimo de aprendizado, e o aprendizado de habilidades comportamentais vai além do treinamento em habilidades técnicas. Normalmente, as empresas investem no treinamento e no desenvolvimento pessoal de seus colaboradores, mas só avaliam o custo do investimento e a satisfação dos participantes. Assim, muitas vezes, pela falta de um instrumento que possa medir o seu retorno, o treinamento é encarado como um benefício a ser agregado ao custo de pessoal e não como um investimento que traga retorno.
O instrumento tradicional de avaliação de reação em um treinamento mede apenas a satisfação imediata dos participantes, fortemente influenciada pelas emoções suscitadas pelo processo. Assim, um evento do tipo “show” tende a ter uma melhor avaliação do que um processo mais longo de aprendizado autogerenciado de ensino à distância (EAD), mesmo que o seu resultado final em termos de mudança comportamental seja comparativamente menor.

A PowerSelf desenvolveu um método de avaliação dos resultados efetivos do aprendizado através de indicadores. Em dois anos de aplicação e aprimoramento constante, os indicadores orientaram a consolidação de nossa Trilha de Aprendizado, constituída por uma série de serviços antes e depois do curso presencial. São três indicadores: Aproveitamento, Ganho e Responsividade. O Aproveitamento de uma turma é o percentual de participantes com mudanças efetivas reportadas por eles e/ou seus apoiadores. O Ganho é uma avaliação quantitativa da melhora percebida com a mudança comportamental. Este ganho percebido é uma avaliação subjetiva sim, como de resto toda avaliação o é, mas sem dúvida, é uma medida da melhoria da produtividade pessoal. A Responsividade mede o engajamento do participante no processo de aprendizado, funcionando como uma avaliação de desempenho progressiva.

Aproveitamento é o indicador mais importante da efetividade de um treinamento. Buscando melhorá-lo aprimoramos o processo da Trilha. De fato, de uma média de 35% no início de 2014, chegamos a 80% em meados de 2016. Isto é, 80% dos participantes da Trilha percebem ganhos significativos, ao redor de 50%, no seu desempenho. A Responsividade, implantada somente no fim de 2015, tem variado entre 60% e 70%. O indicador de Ganho permite que se tenha uma medida do retorno do investimento, supondo que o Ganho se dá sobre a Produtividade de Pessoal, dada pela relação entre margem bruta e massa salarial. No cálculo, consideramos apenas os participantes com ganhos relatados. Caso a empresa não acompanhe o indicador de produtividade de pessoal, supomos que a produtividade dos participantes antes do processo de aprendizado fosse de 2,5 vezes o seu salário – uma produtividade baixa, já que só o custo de um trabalhador no Brasil é de 2 vezes o seu salário. Quanto maior a produtividade anterior, mais rapidamente retornaria o investimento, pois se está medindo o ganho em relação a ela. 

O aumento de produtividade das pessoas pode não se traduzir num retorno financeiro imediato para a empresa, pois este depende de muitos outros fatores e também porque as pessoas que participam do processo podem representar uma parcela pequena do total de colaboradores, mas, de qualquer maneira, trabalhar consistentemente com indicadores que traduzam o resultado residual efetivo do treinamento é uma forma muito melhor de avaliar o investimento em pessoal do que a tradicional avaliação de reação.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Progressista fascista

Interessante como a esquerda mal entende (e se apropria) de certos termos para incorporá-los nas suas rezas seja como auto-elogio ou como anátema dos adversários da hora.

Progressista é um termo surgido com o Iluminismo e que foi incorporado ao ideário positivista que lhe sucedeu e influenciou seu contemporâneo marxismo via Hegel. Significava o progresso da humanidade pela via da racionalidade nas ciências, na tecnologia e nas instituições (positivismo). Também significava o progresso dialético da história rumo ao espírito puro (Hegel) ou à sociedade sem classes (Marx). Ou seja, era uma bandeira tanto liberal, como social-democrata, como marxista. Hoje significa ser de esquerda e não se sabe muito bem o que isso significa. Eu, por exemplo, sou considerado por uns de esquerda e por outros de direita.

Outro termo é fascista, uma ideologia comunitarista, totalitária e nacionalista, que se opõe em todos os seus dogmas ao liberalismo e só no quesito nacionalismo se opõe ao marxismo. Entretanto, na América Latina colonizada (assim como nas nacionalidades europeias do século XIX submetidas aos impérios da época) o socialismo adquire um viés nacionalista, que o aproxima do ideário fascista. O mais gozado é que a social-democracia, que naquela época era esquerda e aliada, aqui é considerada inimiga.

Ou seja, a política não é feita de ideias, mas de simpatias e antipatias pessoais. Eu não defendo pessoas e as critico quando não se comportam de acordo com o que acredito ser certo, quer se digam de esquerda ou de direita.

Infelizmente, a Internet prolifera a replicação de um tipo de opinião acrítica, uma simples repetição de mantras, onde não há questionamento nem exame de ideias, mas apenas expressão de sentimentos bons ou maus na forma de loas e críticas a pessoas. O pensamento raramente é original (se é que pode ser) nessa reciclagem constante. Nesse monte de lixo intelectual reciclado na Internet se encontram também pepitas de ouro e pedras preciosas. Ao invés de navegar na web deveríamos minerar. E cabe também peneirar.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Administração do Tempo

O tema da Gestão do Tempo é tratado por duas “escolas” de formas assemelhadas, mas distintas. A primeira é a Escola da Administração[1] iniciada nos anos 60 e que foca no tempo de trabalho ensinando técnicas e ferramentas para lidar com os “ladrões de tempo”[2] que afastam o profissional das tarefas típicas da rotina do seu cargo. A segunda vertente é a Escola da Ética[3], à qual me filio, que foca na vida como um todo ensinando boas práticas para uma vida mais feliz e equilibrada. Essa escola tem raízes na filosofia e pode-se dizer que nasceu com Sócrates. Além de mais antiga, a Escola da Ética é mais abrangente e inclui os preceitos da Escola da Administração, na medida em que o trabalho faz parte da vida.

A grande diferença entre as duas está na disciplina da Reflexão, a mais básica das Três Disciplinas da abordagem que desenvolvi para a prática da boa “gestão do tempo”. As aspas se justificam, pois não administramos o tempo, mas sim nossas decisões sobre o que fazer.

Uma coisa é decidir o “que fazer” a cada instante. Aqui estamos no âmbito da administração: o uso de técnicas para melhorar eficiência, qualidade e eficácia. As técnicas da eficiência são instrumentais: aprimoram os meios, mas não questionam os fins a que se submetem, pois no plano do “que fazer” supõe-se que os objetivos são dados ou conhecidos.

Podemos viver sem questionamento, deixando a vida nos levar, cumprindo a rotina como destino, ao sabor do acaso ou sob a pressão das circunstâncias. Outra coisa é decidir “como viver”. Aí transcendemos a economia e entramos na filosofia – no terreno das dúvidas antes das certezas. Sim, pois a realização pessoal não é uma meta, ou, se o for, é essencialmente inalcançável. Realização é um processo e não um estado – é a forma de percorrer o caminho da vida e a construção de si mesmo ao longo do percurso. Isso pode ser feito com método, seguindo uma “técnica” milenar: a própria filosofia da ação – a ética. Isso resume tudo: administrar bem o tempo é viver bem e para isso há uma única fórmula: reagir menos automaticamente para agir mais conscientemente. Aí toda a dificuldade. O natural e fácil é a inação ou a reação condicionada, supondo que se sabe o que se quer. A ação consciente é um aprendizado, uma disciplina – justamente porque não é natural. Por isso é preciso aprender a administrar a si mesmo (e não o tempo)  – aprender a viver bem, desenvolvendo hábitos e processos de decisão mais racionais.




[1] Creio que é essa corrente que Covey chamou de Escola da Eficiência.
[2] Reuniões, falta de planejamento, interrupções, procrastinação, má delegação, desorganização da informação e do espaço, gestão de projetos.
[3] Covey usa o termo Escola da Eficácia, mas entendo que o seu enfoque ainda é instrumental, supondo que os fins são dados de maneira inquestionável.

sábado, 30 de julho de 2016

Conflações

 A filosofia usa palavras para falar... do significado das palavras. E cria palavras para explicar... novos significados. Uma delas é conflação: a falácia lógica de tratar conceitos distintos como se fossem um. E conflacionamos muito!

Por exemplo, o termo ‘poder’ conflaciona o ‘poder de’ fazer algo (capacidade, potência, agência) com o ‘poder sobre’ outras pessoas (influência, comando, domínio). À primeira acepção subjaz a ideia de cooperação, a segunda evoca conflito – nada mais distinto.

Outro exemplo: ‘verdade’. Há pelo menos quatro significados de verdade. Um deles é aletheia - a revelação da verdade oculta. No platonismo a verdade está num mundo ideal do qual a realidade é uma cópia imperfeita. A busca desta verdade, que se revela por trás das aparências da realidade, é o moto da pesquisa científica. Conhecimento (episteme) é a crença que corresponde a esta verdade e que justifica essa correspondência, sustentando suas razões pela argumentação lógica. Conhecimento não é mera opinião (doxa), essa crença baseada na intuição das aparências e que se justifica apenas pelo hábito.

A palavra grega parresia enuncia outro conceito de verdade: a verdade do discurso ou franqueza. O dizer a (sua) verdade a qualquer custo e sem outra finalidade é uma virtude, um dever e uma capacidade - quase uma técnica. Virtude da franqueza, da transparência, honestidade de quem nada esconde. Dever de respeitar a verdade que se justifica e mudar de opinião. Capacidade de convencer pela mera enunciação da verdade, sem usar recursos da retórica.

A palavra latina veritas traz uma terceira acepção: a verdade do registro – rigor e exatidão. Veritas é a veracidade do registro da realidade, que observa e descreve; que infere, não prescreve, não julga nem avalia, não ordena nem condena. O registro é verdadeiro quando exato: não manipulado, nem distorcido. E se verifica verdadeiro se confirmado pela experiência. Esta verdade também é cultivada pela ciência objetiva.

A quarta noção de verdade é dada pela palavra hebraica emunah: a verdade da fé ou confiabilidade. É a crença na promessa, fidelidade à palavra divina e à palavra empenhada. Convicção inata, independente da razão.

Onde então está a verdade do poder? Que confusão de conflações!