domingo, 21 de junho de 2009

Diário da ICANN Sydney 22-06-2009

Chegamos a Sydney às 7h30 de um sábado chuvoso depois de 29 horas de vôo. Somem 13 horas no fuso horário e o correspondente jet lag e me desculparão por não ter assistido à reunião das 9h. Entretanto, das 13h às 18h30 participei da reunião do GNSO e à noite tive um jantar/reunião da ISPCP Constituency. A reunião terminou às 22h, pois arriscávamos afogar de cara no prato de sopa, de tanto sono.

A palavra somem no parágrafo anterior é propositalmente ambígua. Significa tanto "somar" (somem vocês 13 horas a mais) quanto "sumir" - 13 horas sumiram da minha vida. Interessante sensação, parece que me adiantei no tempo. Escrevo agora as 5h30 da manhã de segunda enquanto vocês aí no Brasil ainda estão curtindo o finalzinho do domingo.

É preciso entender a estrutura da ICANN (http://www.icann.org/en/structure/) para compreender os relatos que se seguirão.

O órgão máximo é o Board (Conselho Diretor). Os diretores não são remunerados, nem mesmo o Presidente do Conselho - aliás, isso é uma das discussões em curso. A função executiva remunerada é desempenhada pelo CEO e o pessoal do staff. Nenhum órgão ou função decisória em toda a estrutura é remunerado, mas sim custeado - despesas para viagem e reuniões.

Quem paga a conta são os "Contratados" representados nas SOs "Supporting Organizations": GNSO ("Generic Names"), ccNSO ("Country Codes") e ASO ("Regions"). O grosso do sustento vem dos contratos com os Registries e Registrars (Contratados "contracted parties" - no jargão ICANN), representados na GNSO. Está em curso a reestruturação do Conselho da GNSO dando mais poder aos Contratados numa estrutura bicameral. De um lado ficarão os Contratados e do outro os Usuários (termo que a ICANN não usa). Nesta reunião de Sydney, o Conselho se reúne pela última vez na estrutura anterior. Com mais poder para quem paga a conta, o mercado de registro de domínios tende a crescer. Por isso, o assunto dominante na ICANN é a abertura para novos Domínios Genéricos de Primeiro Nível (gTLDs). Mais adiante.

Poder pode ser grana ou voto. Na governança da Internet, os EUA querem dar poder à grana, o resto do mundo quer dar poder ao voto. Na ICANN, os governos estão representados no GAC (Government Advisory Committee) - uma espécie de ONU. Interessante: a ONU abaixo de um Conselho e no mesmo nível dos Contratados. Obviamente, os governos ficam furibundos. Há briga (diplomática) no GAC e multiplicam-se fóruns para discutir a governança da Internet fora da ICANN, com o intuito de transferir seu poder para a esfera da ONU ou de uma organização multistakeholder mais internacionalizada a ser criada.

A grande novidade do conceito "multistakeholder" é o poder de fiel de balança (entre a grana e o voto) dado ao terceiro setor. Leia-se ONGs ou o jargão "sociedade civil organizada", representada na ICANN através da ALAC (At Large Advisory Committee). O problema aqui é a legitimidade e a força da representação. Surge um novo tipo de "empreendedor sem grana" ou "representante sem voto", que organiza e representa uma causa, um setor, etc. Não deixa de ser uma iniciativa privada, mas o problema é o etc. Por aí corre-se o risco de entrarem interesses ilegítimos. E o fiel da balança pode pender ora para a grana (dinheiro privado) ora para o voto (dinheiro público) [1].

A estrutura se completa com os órgãos mais técnicos: RSSSAC, que reúne os responsáveis pela operação dos servidores da raiz; SSAC, comitê assessor para segurança e estabilidade do sistema DNS. Algumas organizações de caráter técnico existentes à época da constituição da ICANN ganharam representação na sua estrutura. O IETF tem um destaque especial e criou-se um Grupo de Ligação, composto por 4 outras entidades: European Telecommunications Standards Institute (ETSI), International Telecommunications Union's Telecommunication Standardization Sector (ITU-T), World Wide Web Consortium (W3C), e o Internet Architecture Board (IAB).

A IANA (Internet Assigned Names Authority) é uma função da ICANN embora historicamente a preceda. A IANA foi criada para cuidar da base de dados da raiz da Internet e organizar a distribuição de endereços IP. Além dos nomes e IPs, todos os parâmetros dos protocolos Internet são armazenados na IANA. Finalmente, a própria documentação da Internet (os RFC) eram uma função da IANA exercida pessoalmente por Jon Postel. Postel, até 1998, ano de sua morte, confundia-se com a própria IANA.[2]

O Brasil, através dos representantes do governo, participa ativamente no GAC e, através do pessoal do NIC, tem certa liderança no CCNSO. O terceiro setor brasileiro também é muito ativo na ALAC. O setor privado participa através das "constituencies" do GNSO. A representação privada brasileira é mais tímida, pois o setor privado brasileiro como um todo demonstra pouco interesse pelo mercado de registro de domínios. Através do LACNIC o Brasil também tem voz na ASO.

Nivaldo Cleto, Flávio Wagner e eu acompanhamos, nos dois primeiros dias, as reuniões do GNSO. Os assuntos em discussão são os novos gTLDs e a reestruturação do GNSO para a estrutura bicameral. Demi Getschko se juntou a nós no domingo. Aliás, o Demi estava no Board da ICANN até agora, mas seu mandato expirou. O Brasil está sem representante no Board.

Em relação aos gTLDs, foram apresentados estudos que embasarão a terceira revisão do Manual de Qualificação (Applicant Guidebook) para registro de novos gTLDs, cuja edição está prevista para setembro. Os estudos cobrem o que no jargão da ICANN é chamado de "questões globais" ("overarching issues"): Proteção de Marcas; Potencial para Comportamento Ilícito; Escalabilidade da Raiz; Análise de Custos e Benefícios para o Usuário. Se tudo correr como previsto, no fim do ano começarão a ser avaliadas as solicitações de novos domínios de primeiro nível. Hoje são 21 os existentes[3].

Quanto à revisão da estrutura, a reunião foi uma tediosa edição de texto, pois as grandes decisões já haviam sido tomadas e agora se trata de votar o detalhe. Embora digam que é no detalhe que o diabo se esconde, confesso que não consegui enxergá-lo. Talvez por falta de malícia suficiente.


[1] Interpretação liberal. "There is no free lunch", poder se traduz sempre em dinheiro.

[2] Devo este esclarecimento ao Demi

[3] Postei a lista em http://jaime-wagner.blogspot.com/

Lista dos gTLDs existentes

Genéricos e Genéricos Restritos
.BIZ
.COM
.INFO
.NAME
.NET
.ORG
.PRO

Genéricos Patrocinados (sponsored)
.ARPA (RESERVADO PARA OPERAÇÕES DE INFRAESTRUTURA DA IANA)
.AERO
.ASIA
.CAT
.COOP
.EDU
.GOV (RESERVADO PARA O GOVERNO AMERICANO)
.INT
.JOBS
.MIL (RESERVADO PARA DEPTO DE DEFESA AMERICANO)
.MOBI
.MUSEUM
.PRO
.TEL
.TRAVEL

sábado, 20 de junho de 2009

Diário da ICANN Sydney – 21-06-2009

A ICANN (http://www.icann.org/) é uma ilustre desconhecida no Brasil, mesmo entre aqueles que trabalham com Internet, que sofrem as consequências das suas decisões e participam, marginalmente, das oportunidades abertas por ela.

Estarei relatando minha participação no 35º Encontro da ICANN em Sydney, Austrália, mas este primeiro artigo visa explicar o que é a ICANN. Tentarei ser breve e didático, mas é impossível deixar de usar siglas, já que a ICANN e seus órgãos formam uma constelação de siglas ininteligíveis.

A criação da ICANN marca o início da internacionalização da governança da Internet, processo ainda em curso. Governança da Internet soa estranho, pois nenhum governo tem poder sobre a rede como um todo. A ICANN não manda na Internet, mas sim regula o DNS. O núcleo da Internet é o seu sistema de endereçamento hierárquico (DNS - Domain Name System), que permite mapear nomes de domínios em endereços IP, identificando qualquer máquina na rede e permitindo a troca de mensagens entre elas. A ICANN distribui endereços IP e supervisiona o registro de domínios em todo o mundo.

A Internet é uma criação americana, porém Clinton entregou à ICANN a missão de regular o DNS. De fato, a governança da Internet ainda é americana, pois a ICANN é uma ONG organizada sob as leis da Califórnia e está sujeita a um acordo (JPA) que dá poder de veto ao Departamento de Comércio dos EUA. Seja por receio de entregar poder a outros governos e, ao mesmo tempo, desejo de manter o caráter internacional da rede, seja por inclinação liberal e visionária inspirada em suas origens acadêmicas, a ICANN foi criada com um sistema de gestão "multistakeholder", colegiado envolvendo governo, academia, iniciativa privada e sociedade civil organizada. Modelo, aliás, que serviu de inspiração para o CGI.br.

Além da importância estratégica como chave para o funcionamento da Internet, o DNS também constitui um mercado: o de registro de domínios. Mercado cartorial, equivalente aos registros civil e de imóveis no mundo real, sua exploração é entregue pela ICANN a "Registries" [1]. O "Registry" é uma empresa ou organização que explora um Domínio de Primeiro Nível (TLD - Top Level Domain) a título oneroso (ou não) e repassa a "Registrars" a tarefa de vender (ou dar) os domínios de segundo ou terceiro nível aos usuários. A Verisign e a Affilias são Registries de gTLDS. O NIC.br é o Registry do ccTLD “.br”, responsável pelo registro de todos os domínios que terminam com “.br”. Os provedores brasileiros (UOL, Terra, Locaweb, iG, etc) representam o papel de Registrars tanto revendendo domínios para o NIC.br quanto para a Verisign. Outros operadores de gTLDs não são muito ativos no mercado brasileiro.

Um "Registry" pode criar domínios de segundo nível, mas deve obedecer a critérios da ICANN para isso. O "Registrar", por sua vez, pode vender tantos domínios de terceiro nível quanto queira. Suas obrigações são de manter um cadastro dos seus usuários e operar o respectivo servidor de DNS.

A receita da venda de domínios no terceiro nível não chega a viabilizar uma empresa de porte, constituindo-se, no mais das vezes, numa receita complementar de provedores de outros serviços na Internet. Até pode haver um mercado no segundo nível, dependendo das condições. Entretanto, no primeiro nível, o mercado de domínios é bastante interessante. A receita anual da Verisign é de US$ 1,15 bilhão e a do NIC.br é de R$ 60 milhões. Os empreendedores brasileiros, por ignorância, têm desprezado este mercado. Há uma janela de oportunidade aberta na medida em que se discutem as regras (bem mais estritas que as existentes) para a criação de novos gTLDs.


[1] A estrutura do DNS é uma árvore, criada sob inspiração de acadêmicos (americanos) custeados pelo governo (americano). A raiz é o "ponto" ("dot"). Acima da raiz estão os Domínios de Primeiro Nível ou TLDs (Top Level Domains) sempre grafados com o "ponto" na frente (.com, .net, .br, .us).
No início, quando a Internet ainda era exclusivamente americana, os TLDs tinham apenas três letras que mapeavam o mundo (os EUA) em comunidades de interesses (gov, org, edu, com). Com a internacionalização da Internet criou-se a categoria dos Códigos de Países (ccTLDs - Country Codes Top Level Domains) com dois dígitos (".br", ".us", ".fr", ".ar") e ps TLDs já existentes passaram a ser chamados de genéricos (gTLDs). A definição do registry autorizado a explorar os ccTLDs foi deixada a cargo de cada país. No Brasil, o CGI foi criado para essa finalidade.
Eventualmente, a exploração de alguns gTLDs foi repassada à empresa Verisign, junto com a responsabilidade pela operação dos servidores da raiz. Posteriormente, a pressão por concorrência no mercado de domínios levou a ICANN a criar novos gTLDs (com 3 letras ou mais, por exemplo “.travel”, “.mobi”, “.asia”), autorizando novos "registries" a explorá-los. A ICANN também foi levada a forçar a Verisign a entregar a outra empresa a exploração do domínio .org.
Mais acima (ou na frente) do primeiro nível, vem o segundo nível, e assim por diante. Quase todos os países (ccTLDS) adotaram as mesmas categorias de três letras existentes no primeiro nível genérico para os seus segundos níveis. Assim, temos ".com.br" e ".gov.br" como exemplos de domínios de segundo nível do ccTLD ".br". Vale lembrar que o ".com" é um gTLD de primeiro nível explorado pela Verisign, que repassou a exploração do domínio de segundo nível ".br.com" a um Registrar privado, no caso uma pequena empresa inglesa.

sábado, 13 de junho de 2009

Princípios para a Internet no Brasil

Faço uma pausa na publicação do livro para relatar a conclusão de um importante trabalho de mais de ano no CGI.br. A Carta de Princípios para a Internet no Brasil foi objeto de ampla discussão e difícil consenso. Os Princípios pretendem orientar toda ação e decisão que possa afetar a Internet, tanto por parte de órgãos do governo como da sociedade civil. Para alcançar eficácia, devem ser objeto de ampla divulgação. Apesar da pífia visitação deste blog, faço aqui a minha parte.

Princípios para a Internet no Brasil

1. Liberdade, privacidade e direitos humanos
O uso da Internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressãode privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática.


2. Governança democrática e colaborativa
A governança da Internet deve ser exercida de forma transparente, multilateral e democrática, com a participação dos vários setores da sociedade, preservando e estimulando o seu caráter de criação coletiva.

3. Universalidade
O acesso à Internet deve ser universal para que ela seja um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos.

4. Diversidade
A diversidade cultural deve ser respeitada e preservada e sua expressão deve ser estimulada, sem a imposição de crenças, costumes ou valores.

5. Inovação
A governança da Internet deve promover a contínua evolução e ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso.

6. Neutralidade da rede
Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento.

7. Inimputabilidade da rede
O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos.

8. Funcionalidade, segurança e estabilidade
A estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede devem ser preservadas de forma ativa através de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e estímulo ao uso das boas práticas.

9. Padronização e interoperabilidade
A Internet deve basear-se em padrões abertos que permitam a interoperabilidade e a participação de todos em seu desenvolvimento.

10. Ambiente legal e regulatório
O ambiente legal e regulatório deve preservar a dinâmica da Internet como espaço de colaboração.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Cap. 1 - Escravos do Tempo - Parte 1

It’s still the same old story,
A fight for love and glory,
A case of do or die.

As Time Goes By
(música do filme Casablanca)
letra e música de Herman Hupfeld

Na República [1], Platão divide as pessoas em três classes, de acordo com a natureza de suas almas: os homens de ouro (natureza racional), os de prata (natureza espiritual) e os de ferro ou bronze (natureza apetitiva). Embora todas as almas contenham todos os três elementos, há uma natureza distintiva, determinada pelo elemento dominante.

Para Platão os homens de ouro estão no topo da hierarquia como aqueles que, pela via da racionalidade, aprendem a reconhecer o que é o “bem em si”, o “valor verdadeiro”, apresentam um comportamento ético e equilibrado, cultivam as virtudes e realizam o seu potencial humano, buscando sempre o aprofundamento do saber através da reflexão filosófica. Para Platão, apenas a alma racional pode vislumbrar o conhecimento “verdadeiro” das idéias por trás das coisas e assumir completamente a responsabilidade pelo seu destino. Os homens de ouro constituiriam a “classe ociosa” dedicada à filosofia – estudo e contemplação das idéias e da verdade –, à arte – criação e contemplação do belo – e à política como administração da justiça. No mundo grego, a verdade, a beleza e a justiça eram os valores máximos. Utilidade, técnica e economia não eram valores, mas encargos. O ócio era um atributo nobre e o trabalho um encargo vil.

Os homens de ouro seriam os únicos que poderiam alcançar a verdadeira felicidade, pois tinham aquilo que os gregos chamavam de sofrosyne. Moderação, sobriedade, temperança, chegam perto do seu significado de meio termo entre impulsividade e insensibilidade. Somos sofron quando nos recusamos a ser pegos pelo imediatismo de uma situação, quando consideramos as conseqüências futuras de nossos atos. Talvez a melhor tradução de sofrosyne seja aquilo que hoje se entende por inteligência emocional [2].

Na base inferior da pirâmide platônica, os homens de ferro consomem a vida em prazeres imediatos ou afundados na rotina cotidiana, sem consciência de si mesmos e sem o comando da própria vida, condenados a uma vida servil e alienada.

A forma ideal de governo preconizada por Platão, na República, era a aristocracia ou governo dos melhores[3]. A aristocracia helênica não privilegiava sangue ou classe, mas repousava na distinção entre os que conhecem a si mesmos e vivem a verdade e aqueles que não o fazem. Qualquer um poderia ascender nesta escala desde que aprendesse a dominar sua vontade e a praticar a racionalidade.

Para os helênicos a alma se sobrepunha ao corpo, e a razão seria o principal atributo da alma, única forma de conhecer as idéias, consideradas mais verdadeiras do que as coisas. O cristianismo substitui a razão pela fé, mantém o primado da alma, mas a razão não basta para atingir a verdade. Trata-se, então, de ser iluminado por Deus. A idéia de Deus só é intuída por um ato de Sua graça. O clero torna-se uma nova classe ociosa a dedicar-se aos serviços espirituais, voltados para a busca de graça e da salvação. Mais tarde, o Renascimento marca a volta do ideal grego da razão como fonte de todo conhecimento, porém o conhecimento dos fatos (a ciência) se sobrepõe ao conhecimento das idéias (a filosofia). A ciência se torna prática, gerando a tecnologia e a indústria. O mundo passa a girar em torno da economia e a utilidade se torna o grande critério de valor. Protestantismo, liberalismo e marxismo, a religião e as ideologias da sociedade industrial condenam o ócio, e o trabalho passa a ser o grande criador de valor, num mundo essencialmente econômico.

Na filosofia moral, a razão pura, como origem de todo bem, encontra em Kant sua expressão máxima, para se revelar em Schopenhauer, como a outra face de uma abnegação (ou negação de si mesmo) que leva a uma frieza mortal e à negação da vida. É Nietzsche quem reage e coloca o corpo, a emoção e o indivíduo numa posição privilegiada. Neste caminho, surgem a psicanálise de Freud e a psicologia científica de Pavlov e Skinner a mostrar que os motivos do comportamento humano têm componentes inconscientes e subconscientes que a razão desconhece; surge Marx e as ciências sociais a mostrar que as condições sociais e históricas determinam comportamentos, valores e idéias; Darwin vem mostrar que o homem é apenas uma espécie entre outras; e, por fim, a ecologia mostra que apesar de todo progresso material, ou melhor, por causa dele, talvez essa espécie não seja a mais apta a sobreviver. Essa é a famosa desconstrução pós-moderna da razão: a noção de que a razão pode não ser a luz a iluminar a escolha da ação futura, e que é muitas vezes uma desculpa para a ação passada, permitindo que o homem não depare com o seu lado negro e possa esconder da própria consciência motivos desagradáveis que atestam o pecado original de sua animalidade congênita.

Os helênicos constituíram uma civilização admirável, berço de toda a civilização ocidental, racional e científica. Entretanto, a sociedade helênica era nitidamente excludente. Seu conceito de cidadão excluía as mulheres e os não-helênicos. Além disso, o ideal platônico baseava-se na negação das emoções e dos instintos, o que Freud chamou de repressão e acusou como a causa de muitas doenças da mente e do corpo. Entretanto, o ideal grego do filósofo parece encerrar alguma verdade. Nesse sentido, as pessoas se dividem em dois tipos. As pessoas verdadeiramente livres, que praticam a filosofia, conhecendo a si mesmas (inclusive suas imperfeições) e assumindo a responsabilidade pelo que fazem do seu tempo; e as pessoas ocupadas que, por coerção, necessidade, estreiteza de visão, ou imaturidade emocional, têm o seu tempo ocupado, determinado externamente e apenas subsistem como escravos do tempo.

Na civilização ocidental pós-moderna, baseada em sistemas de informação e troca em escala global, o problema da liberdade ressurge de maneira muito viva. Há quatro séculos instituiu-se o modo de vida capitalista, calcado no emprego: uma troca de trabalho, medido em tempo, por dinheiro. Girando em torno do emprego, os três conceitos se confundem. Tempo, trabalho e dinheiro parecem ser três aspectos de uma mesma realidade. Entretanto, ao pensar melhor deve-se reconhecer que tempo, dinheiro e trabalho são conceitos distintos. Tempo é vida, dinheiro é reserva de valor ou meio de troca, e trabalho é geração de valor.

Tem-se, hoje, um acesso muito mais democrático ao conhecimento. O conhecimento e a sabedoria acumulados são muito mais variados e profundos do que o eram na Grécia. O desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade do trabalho permitem que, em termos médios, as pessoas tenham mais tempo livre. O desenvolvimento da medicina e das condições de higiene aumentaram a expectativa de vida média. Ou seja, a possibilidade de ócio é maior e para mais gente. Mas, embora em termos absolutos (e mesmo em termos relativos) existam, hoje, mais “homens de ouro” do que na Grécia antiga, o modus vivendi moderno tende a condicionar a proliferação de “homens de ferro”, verdadeiros escravos do tempo. A grande maioria “não tem tempo” para cultivar outros valores que não se traduzam em dinheiro e consumo.

[1] PLATÃO. República. Livro III.
[2] GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995.
[3] Em grego aristos significa “o melhor”.